Ver um prédio público abandonado, com goteiras, janelas faltando, é ruim. Saber que ele é um marco de um bairro tradicional e está vazio, sem uma função, é ainda mais desanimador. Agora, ver nessas condições, um prédio que é tudo isso e ainda fez parte da sua infância, de forma tão marcante, é muito triste.
Buscando fotos atuais e informações sobre o Lar Santana, uma referência na Vila Tibério, bairro antigo de Ribeirão Preto, para escrever esse artigo, a pedido do meu amigo Fernando Braga, senti pena do prédio - neste estado, há tantos anos abandonado!. Um lugar que na minha memória infantil teve tanta vida.
Minha mãe, a tia Eurides, professora primária, alfabetizou centenas de crianças durante os 18 anos que deu aulas lá. De vez em quando, carregava em dias alternados, minha irmã mais velha, a Mariângela, ou eu. Assistíamos às aulas, mas eu gostava mesmo era de ir para o pomar e para a horta, onde sempre era bem recebida por uma irmã ou pelo jardineiro, que me mostrava flores novas nos canteiros, me guardava mangas e, na época da jabuticaba, me indicava os galhos mais carregados.
Festas Juninas
E as festas juninas? Eram abertas ao público e mexiam com todo o bairro. E com os filhos da tia Eurides. Minha mãe nos punha na quadrilha - minha irmã, eu e as nossas vizinhas, a Bia e a Regina Mestriner, amigas inseparáveis. Os ensaios eram divertidos, mas o auge era a apresentação. Quando cresci um pouco preferi fazer correio elegante e adorei. Achava que estava prestando um belo serviço a Santo Antônio levando e trazendo bilhetinhos com declaração de amor.
Ao olhar o Lar Santana hoje, senti também um misto de raiva porque esse abandono é mais um exemplo de má gestão do patrimônio público. E vergonha, pela pouca importância que no Brasil - do Oiapoque ao Chuí - ainda damos à preservação da memória. Me pergunto: Embora Ribeirão esteja numa região privilegiada de um estado rico, a cidade tem déficit de tanta coisa, creche, escolas, centros culturais, escolas técnicas - por que, então, deixar uma área de 7.825 metros quadrados sem uso, com um prédio enorme - 2.500 metros quadrados de área construída, com capela, refeitório, dois andares, vários cômodos - trancado? Isso, sem falar na área verde - que abrigava a horta, o pomar e o parquinho.
“A escola é a casa delas”
Em dezembro de 2014, a Ordem das Franciscanas da Imaculada Conceição, anunciou o encerramento das atividades, depois de 82 anos de funcionamento. O Orfanato que chegou a abrigar 220 meninas de 6 a 14 anos, tinha apenas 40, sob os cuidados de três irmãs já idosas - de 74, 75 e 86 anos.
Um mês depois, o prédio foi declarado patrimônio cultural - título merecido. O Lar Santana faz parte da história do bairro, desde o começo. O terreno foi doado por um fazendeiro numa época em que o café enriquecia a região. E ali foi construída a Escola Santana, inaugurada nos tempos áureos da Vila Tibério - o bairro tinha fábricas de sapatos, cerâmicas, pequenas indústrias, empórios, armazéns, secos e molhados e a Cervejaria Antarctica Paulista. Em 1948, o colégio virou orfanato. Abrigou milhares de órfãs e de histórias de vida, cada uma estava ali por problemas diferentes, mas motivados pela mesma origem: a pobreza, o abandono.
Convivi de perto com as internas. Aos domingos, íamos buscar duas ou três para almoçar com a gente. Depois, íamos ao cinema, e por fim, o momento tão esperado: escolher um dos sabores da sorveteria do seu Geraldo. E as levávamos de volta. Elas adoravam, eu também. Meus pais nunca foram ricos, mas eu percebia que tínhamos infinitas possibilidades que estavam foram do alcance delas. Muito curiosa, eu perguntava por que estavam no Lar Santana, e ficava penalizada ao pensar que elas não tinham mãe, pai, avó ou tia. E os irmãos? Às vezes sabiam o paradeiro, às vezes não. Eu só não tinha coragem de perguntar se eram felizes morando na escola? Perguntei para minha mãe.
- Sim, são felizes. A escola é a casa delas, aqui encontraram abrigo, comida, educação e carinho.
E quando eu - eventualmente - almoçava no refeitório, e via as mesas enormes, lotadas e todas nós comendo aquela comidinha boa, com verduras da horta, sobremesas com frutas do pomar, eu ficava tranquila, sabendo que o Lar Santana era a casa delas.
Lar Santana foi cenário da prisão da única religiosa
Se esses motivos não bastassem para justificar o investimento num belo restauro do prédio e um destino apropriado, o Lar Santana foi ainda cenário da prisão da única religiosa durante o regime militar - a Madre Maurina Borges da Silveira (foto). Isso foi em 1969. Ela era a diretora do Lar Santana e cedia o porão para encontro de estudantes, ligados a Juventude Católica e ao movimento estudantil. Ali eles imprimiam material religioso e também “O Berro” - uma publicação contra o regime militar. Madre Maurina foi presa acusada de subversão, por abrigar membros do grupo guerrilheiro Forças Armadas da Libertação Nacional.
Nesse dia - 25 de outubro de 1969, ela estava reunida com o padre Angélico Sândalo Bernardino e com o bispo Dom Felício da Cunha Vasconcelos, no centro da cidade. Recebeu um telefonema do Lar Santana. Do outro lado da linha, um delegado disse pra ela voltar imediatamente para o orfanato. Obedeceu e foi levada pelos policiais. Nunca mais voltou.
No momento da prisão, minha mãe dava aula. Não presenciou a cena, mas ainda hoje, aos 87 anos, se lembra dos policiais vasculhando armários das salas de aula: “Eles entraram na sala da Maria Helena, da Ivone, da Fátima e na minha. Exibiam armas na cintura, assustando as crianças, e jogaram no chão tudo que encontravam no armário. Procuravam um diário com nomes dos frequentadores das reuniões, que não foi encontrado”.
Minha mãe, assim como a Igreja Católica, sempre defendeu que a madre Maurina era inocente. Mas ela foi presa e torturada, recebeu choques elétricos e foi abusada sexualmente. Passou pelo quartel de Ribeirão, presídio de Cravinhos e penitenciária do Tremembé, em São Paulo. Em 1970, soube do seu exílio forçado no México em troca de um cônsul japonês que havia sido sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária. Anos depois, quando voltou ao Brasil, foi morar num convento da sua congregação, em Araraquara, onde morreu em 2011, aos 84 anos.
Qualquer destinação é melhor do que o abandono
Motivos para preservação do prédio não faltam. E o tombamento protegeu o Lar Santana da demolição, ótimo. Mas, até agora, ficou nisso. A prefeitura já falou em levar para lá o Arquivo Histórico e o acervo do Museu da Imagem do Som - o MIS de Ribeirão Preto - mas o projeto não vingou. Na atual administração, ele continua abandonado, ladrões levaram toda a fiação, torneiras e tudo mais que puderam carregar. Nos últimos anos já se cogitou a criação, no local de um memorial da Resistência e a transferência pra lá da Secretaria de Saúde. Nada disso foi adiante.
Uma enquete feita com os moradores pelo Jornal da Vila, mostrou que a maioria prefere que ali seja uma creche ou uma escola. Talvez um museu interativo como o Catavento, em São Paulo ou um centro cultural que ofereça atividades para a população, atendesse um número maior de pessoas. Seja como for, qualquer destinação seria muito melhor do que o abandono e o desprezo pela história da cidade. (LB)
A jornalista Luciana Bistane é
editora do Jornal Hoje, da Rede Globo