Adelaide Sampaio, de 87 anos, conhecida como Deli, nasceu e cresceu na Vila Tibério. Fez Normal no Santa Úrsula, mas queria mesmo estudar pintura. Depois, acabou cursando a Escola Nacional de Belas Artes e sempre trabalhou com pintura. Desacelerou recentemente.
Frequentou o famoso Atelier 1104 que era frequentado por Francisco Amêndola, Bassano Vaccarini, Divo Marino, Jaime Zeiger, Ulieno, Fernando Spíndola e muitos outros. Participou de muitos concursos de pintura.
As irmãs Sampaio
Uma é introspectiva e assunta bem antes de falar. A outra é tagarela. São as irmãs Sampaio. Deli não acredita em religião e “nessas coisas”. Lourdes crê em disco voador, ET, e vida após a morte: é espírita (esqueci de perguntar se ela acredita que o homem foi à Lua e se a Terra é plana). Podia ser uma dupla caipira, mas nem de longe pensem nelas como “sertanejas”. Elas são “de raiz”.
Deli me lembra dona Sara, uma senhora classuda, óleo sobre tela do século XVII, de Frans Hals, que está no Museu Gulbenkian, em Lisboa. Deli não tem nada a ver com a velha dama. Tem muito a ver com a coloração que Franz Hals deu às bochechas da judia. Mas a impressão logo se apaga: Hals força um pouco (foi muito bem pago), e o colorido das faces, se observamos bem, parece maquiagem camuflada. Deli é sutil. Ela não capta simplesmente o tom da carnação e as marcas da vida: vai além e elabora a naturalidade do rosto. Basta olhar o retrato da sua mãe, pintada cinco dias antes de ela morrer.
Mas Deli não fala sobre sua pintura. Não tem importância, Lourdes fala por ela. E do alto das suas mais de mil medalhas conquistadas em disputas de corrida e natação, garante: Deli é uma “gênia”. Bem, não foi assim que ela falou, mas é o jeito que entendemos o que ela pensa.
Fernando Braga, do Jornal da Vila, fica chateando Lourdes, que não se chateia e responde sobre torneios de natação e feitos atléticos. Ela prefere contar sobre o Ateliê 11-04, fundado e frequentado pelas duas na década de 1960. Então, vem uma torrente de recordações, sobre muitos mortos e uns poucos vivos. Elas, praticamente, são as duas últimas sobreviventes de um tempo em que havia vida inteligente em Ribeirão Preto.
Uma vez Lourdes viajou à Europa, dividindo quarto com um amigo gay (camas separadas, sem contato). Os dois, duros. De sanduíche em sanduíche viram museus e gentes. O problema foi que o rapaz só tinha um tênis, que precisava ser ventilado à noite. E fedia. Mas o garoto era um amor, ela diz, já não se fazem amizades como antigamente.
As irmãs Sampaio vivem em um paraíso. Não estou exagerando, é uma casa viva, planejada para “ser de artista”, com quadros e fotos cobrindo as paredes. Lourdes também pinta, e bem, mas prefere duvidar da sua arte, “faço porque gosto”. Lá fora, o jardim. Com cores que você verá pela primeira vez, juro pelo deus em que não acredito. Lourdes rouba mudas de plantas por onde passa e elas vicejam no seu jardinzão. Furta até flor de cemitério. Ela, que acredita em tudo, não tem medo das almas?
Se seu fosse indiscreto contaria muitas aventuras dessas irmãs serelepes. Ou sapecas. A vida de Lourdes na Itália, onde conheceu e casou com Hélio Gori (o tenor) – a maior alegria desse casamento foi comer arroz e feijão em Milão. Os aperreios de Deli estudando no Rio, há séculos atrás, que a fez deixar o curso na Escola Nacional de Belas Artes (acho que ela teve sorte, tomou outro rumo e hoje, é a grande pintora, cultivada por uns poucos que têm olhos de ver). E as vicissitudes das artes e da vida. As mortes dos amigos queridos.
Deli diz que não pinta mais. Está desiludida com os rumos da arte contemporânea. Nem é bom falar. Mas ela pinta, sim, ou vai pintar. É apenas dengosa. Já Lourdes aguarda o tempo para fazer um 360. Agora em 2020, aos 90, então, com mais quatro “velhinhas” poderá realizar o 360 (4 vezes 90): uma competição em que uma equipe de nonagenárias nada em conjunto. Ela é incansável: é a maior recordista brasileira de natação e possivelmente a maior do mundo. Não demora, estará no Guinness.
Deus nos acuda!
Júlio Chiavenato