Bahia... como não se apaixonar pelos seus encantos, suas praias, pela alegria de sua gente ou por suas tradições. Salvador, como é conhecida sua capital, é muito mais que uma cidade, é um estado de espírito, é a vida que pulsa em cada canto contando uma história. Salvador de Jorge Amado e de Mãe Menininha do Cantoá (ou Gantois). Dois nomes considerados os maiores símbolos desta cidade e que tive a honra de conhecer tempos atrás e que, na época, ainda não sabia da importância de ambos no cenário nacional e internacional.
Na ocasião, ainda uma colegial, fui eu conhecer os encantos dessa cidade. Leitora de todos os livros de Jorge Amado levava comigo uma publicação de um jornal local onde ele foi citado em uma pesquisa nos colégios locais como o autor mais lido por essas bandas. Lá chegando, tive a brilhante idéia de querer levar a publicação ao famoso escritor.
Hospedada na época na casa dos queridos amigos José Bury e sua esposa Darcy, que foram nossos vizinhos quando ele, oficial do exército, prestava serviço no Tiro de Guerra de nossa cidade. Bury achou a ideia maluca, mas me ajudou a descobrir o telefone de Jorge Amado. Entusiasmada e esperançosa, na maior cara de pau, liguei para a casa do escritor e qual não foi minha grande surpresa ao ouvir do outro lado da linha nada mais nada menos do que Zélia Gattai, esposa de Jorge e também escritora. Ao relatar sobre a tal publicação, maior foi meu espanto e alegria quando ela me convidou para ir até sua residência na tarde seguinte, na Rua Alagoinhas, 33 no Bairro do Rio Vermelho, para conversar com seu marido.
O casal de amigos ficou deslumbrado e sem acreditar no fato, afinal era Jorge Amado, uma lenda da Bahia. Bem, no dia seguinte lá fomos eu e Bury para casa de Jorge Amado. Pela fachada, a casa não demonstra a beleza de seu interior. Alguns detalhes se perderam na memória, mas fomos recebidos por um serviçal que nos conduziu para uma sala imensa, repleta de obras de arte e de figuras do candomblé. A primeira coisa que me chamou a atenção foi uma máquina de escrever em uma das mesas, ainda com um papel preparado para ser datilografado. Pensei eu: Seria um novo livro?
Ali, a casa transbordava uma tranquilidade impressionante e com a entrada do simpático casal, o que se sentia era uma aura de amor. Como seria perfeito ter um celular na época, pois nem máquina fotográfica levamos. Com muito azulejos brancos com símbolos do candomblé pintados em azul (obras de Carybé), a casa era linda dentro de sua simplicidade, sem falar no belíssimo jardim. Outra coisa que me chamou atenção foi um buquê de flores pintado em um azulejo, presente do amigo Picasso disse ele.
O amigo Bury ficou tão emocionado que não conseguia emitir um som, mal deu conta de segurar a xícara quando nos foi oferecido um café. Mas, o melhor da história foi quando em meio a conversa eu disse a Jorge Amado que adoraria conhecer um terreiro de candomblé. Nova surpresa quando ele informou que ia me encaminhar para o terreiro de uma ialorixá, sua grande amiga, Menininha do Gantois.
Apesar de se dizer materialista, ela era praticante do Candomblé e tinha um posto de honra como Obá de Xangô no Ilê Opó Afonjá. Isso descobri despois. Bury quase desmaiou e eu, achei aquilo ótimo. Profundamente impressionada com o carisma do casal e sem ainda cair na real que estava na casa de um dos maiores escritores do Brasil onde também estiveram Sartre, Simone de Beauvoir, Neruda, Vinícius de Moraes e tantos outros. Ao sair ele me mostrou a famosa mangueira onde hoje repousam as suas cinzas e as de sua amada Zélia.
Ao despedir do quase amigo Jorge, ele me presenteou com um de seus livros com uma dedicatória: Para Ana Maria, uma lembrança da Bahia e de Jorge Amado (esqueci de informar que era Ana com um dois enes). Bem, ele fez uma ligação e, assim recomendada, fui apresentada ao universo do Candomblé e a mais respeitada e querida ialorixá da Bahia: Mãe Menininha do Gantois, símbolo da força dos orixás, cantada em versos e prosa por grandes compositores brasileiros, falecida em 1986.
Foi ela a grande força para acabar com as perseguições sofridas pelo candomblé e com as obrigações de autorização policial para a prática dos rituais. Atendia e ajudava a todos, principalmente aos mais pobres. Sem conseguir convencer Darcy, católica fervorosa, a me acompanhar até o terreiro, corajosamente lá fui eu. Bem, assim conheci também os mistérios do candomblé em uma cerimônia aberta ao público e lá estava Mãe Menininha deslumbrante em seu traje branco, com todos os aparatos de uma verdadeira rainha do candomblé, a ialorixá maior de toda Bahia.
Foi aí que meu coração bateu como os repiques dos atabaques. Esta cerimônia varou a noite, embalada pelo som vibrante e envolvente dos instrumentos como o agogô, o atabaque e tambores de todas as espécies, enquanto eram homenageados os “orixás” com cantos e músicas invocativas destas divindades. Depois seguiram-se as danças com roupas de cores apropriadas, de acordo com o orixá homenageado. Este culto é mais uma herança trazida pelos escravos das nações negras de Angola e Nagô. O candomblé é praticado em todo Brasil, mais profundamente em Salvador.
Mas, mais que uma religião foi a maior força de resistência cultural de uma tradição herdada dos negros das nações africanas que aqui chegaram como escravos. Da África vieram cerca de 11 milhões de africanos trazidos pelos navios negreiros e cerca de um quinto deles vieram da Nigéria. Apesar dos sofrimentos e humilhações, durante 300 anos mantiveram-se fieis as suas tradições. Proibidos de praticar esta crença, foram verdadeiros heróis na determinação de continuarem fiéis a seus orixás. Seus praticantes e os babalorixás, uma espécie de sacerdote, eram perseguidos e castigados.
Para os colonizadores portugueses os rituais e suas danças não passavam de feitiçaria e, portanto, eram proibidos. Praticado nas senzalas ou no meio da mata também era chamado de batuque dos negros. Como se contrapõe à religião católica, os seus adeptos apelaram para o velho ditado: rezar para o santo e acender uma vela para os orixás. Logo descobriram um meio de enganar a polícia associando um orixá a um santo católico. Assim, nesta fusão de elementos culturais, Iemanjá corresponde a Nossa Senhora da Conceição ou Nossa Senhora do Rosário, Iansã é Santa Bárbara Xangô virou São Jerônimo, os gêmeos Ìbejì são Cosme e Damião e Oxóssi é São Jorge.
Uma das principais características do candomblé é o ritual de iniciação. Começa desde a lavagem das contas de um colar pelo dono do terreiro nas cores do orixá escolhido pelo iniciante e o bori que significa o dar de comer à cabeça para que a pessoa fique mais forte para entrar em contato com as divindades. Depois que a cabeça é lavada com o sangue de animal de duas patas e já com o colar lavado e o bori, o iniciante é chamado de abiã e após um primeiro grau de iniciação se torna iaô. Após sete anos passa para eboni. O posto mais alto na hierarquia do candomblé é o de pai de santo ou babalorixá para o homem e de mãe de santo ou ialorixá para mulher.
O candomblé foi combatido e perseguido pela polícia até 1930. Mas, sobre isto, conto depois. Assim, naqueles idos, ainda sem imaginar com o tamanho da importância desses dois nomes, conheci o criador de Gabriela, Cravo e Canela e de Dona Flor e Seus Dois Maridos e entrei na roda no terreiro de Menininha do Gantois. Atualmente a casa do escritor é um museu, tipo um memorial, e o terreiro do Gantois foi tombado.
Mas, vale lembrar que além de toda magia desse culto, com ele vieram também os sabores e temperos que incrementaram a cozinha baiana. Oraieieo Mãe Menininha, Axé Jorge Amado e muito Axé para você também.